domingo, 18 de fevereiro de 2018

Relações de trabalho

Vem cá. Precisamos conversar sobre seu comportamento no emprego.
Para os que não me conhecem, nos últimos anos trabalhei em inúmeros empregos que não requerem muita ou nenhuma qualificação, e em vários países diferentes. Fui garçom, cuidador, bartender, catering staff (não sei bem como explicar...é tipo o sujeito que prepara o café da manhã, organiza os lanches, e serve os almoços no asilo), funcionário de peixaria, porteiro noturno, recepcionista, lavador de pratos, colhedor de uva... No Brasil, Inglaterra, Itália, Irlanda, Noruega, Suiça...
Quais as coisas que todos esses trabalhos possuem em comum? Não requerer qualificação, como dito antes, mas também baixíssimos salários e uma alta demanda (ou física, ou de expectativas). Parece que quanto mais desgastantes, menor o salário.
Nessa experiência eu rapidamente notei uma coisa que parece regra quando se refere aos empregadores e até mesmo aos gerentes: exploração, abuso, falta de respeito, maus tratos, atitudes visando burlar as leis trabalhistas, etc.
Motivo pelo qual não durei em quase nenhum deles - quem vive com pouco e tem algumas economias não precisa ficar se sujeitando a ser saco de pancada, ao menos em minha opinião (mas esse tópico é assunto para outro texto).
De maneira geral sempre tento motivar os colegas a imporem limites, se fazerem respeitar, não aceitar trabalhar de graça ou obedecer ordens absurdas. Sempre sem sucesso. O que normalmente se passa é exatamente o oposto, e isso me deixa tão perplexo quanto empaticamente triste.
Existe toda uma mentalidade que, convenhamos, é um tanto distorcida, de completo desequilíbrio entre oferta e demanda. "Se você não fizer isso tem outros cem querendo ocupar teu lugar". E tem mesmo! Mas esses cem... são tão bons quanto você? Precisam ser treinados? Quanto tempo levariam para aprender o serviço? Possuem as qualidades secundárias que são o diferencial? Possuem sua fluência nas linguas X e Y? Conseguem criar um clima agradável quando interagem com o cliente? E acima de tudo: vão aguentar quanto tempo nesse emprego? O fluxo constante de funcionários é ruim para o empregador tanto financeiramente (em alguns países existem gastos com demissão), funcionalmente (até "pegar o jeito"...), e de impacto na imagem que gera na mente do cliente (que há de errado nesse lugar que não para um funcionário sequer?).
Sim, existem cem querendo seu lugar. Mas existem cem países nos quais você pode fazer esse mesmo trabalho. Em alguns até ganhando melhor. E em cada país existem cem cidade, cada uma com cem negócios como esse no qual você trabalha. O empregador possui muitas opções: você também!
Mas o mais insano de tudo ao meu ver é a mentalidade de refém que desenvolveu Síndrome de Estocolmo que os funcionários possuem. Acreditam que é preciso chegar mais cedo e sair mais tarde, do contrário "pega mal". Quinze minutos antes, quinze minutos depois. E assim você trabalha de graça meia hora por dia. Duas horas e meia por semana. Mais de 10h por mês. De. Graça. Como se já não fosse mal pago o suficiente.
Quer um exemplo BRUTAL do quanto é mal pago? Vi, na Irlanda, uma obra de arte que é a máquina do salário mínimo (https://dublin.sciencegallery.com/hnna/exhibits/minimum_wage_machine/). Funciona assim: você gira uma manivela e a cada certo intervalo de tempo você ganha um centavo. O intervalo de tempo é calculado em quantos segundos leva para fazer um centavo do salário mínimo. Ou seja: se você passar uma hora inteira girando aquilo, você receberá um salário mínimo. É desumano e desmotivador. Mas completamente realista. E ninguém leva aquelas moedas para casa (até hoje não entendi esse desprezo todo que as pessoas possuem pelas moedas de um, ou alguns poucos, centavos).
Mas, voltando ao tópico, você já ganha mal, já se sujeita a cada coisa, e ainda se acha fazendo, como dizem as mães, "nada além de sua obrigação" ao chegar mais cedo, fazer intervalos mais curtos, e sair mais tarde, e tudo sem receber um único centavo a mais para isso (renderia mais usar esse tempo na máquina do salário mínimo, hem!). Não estou dizendo para fazer o oposto. Não concordo com chegar atrasado, alongar os intervalos, sair mais cedo, e esperar salário normal (por pior que seja). O justo é o justo: o que foi contratado, receber pelo tempo trabalhado (ou, em muitos casos, em que se faz disponível).
Você pode não exergar, mas suas atitudes de bem domesticado e acatador servem única e exclusivamente para tornar a situação cada vez pior: para você e todos outos em situação semelhante. Afinal, a mentalidade "todos fazem, logo eu devo fazer também" funciona exatamente igual no outro lado da moeda: "ninguém faz, logo o patrão não pode exigir que eu faça".
O que você está fazendo não é mostrar trabalho, mostrar interesse, mostrar que valoriza. O que você está fazendo é se oferecer de graça, desvalorizando o que você faz, dando mais poder para o empregador, tirando cada vez mais o poder dos empregados, e transformando a si e, por tabela, aos que estão em situação semelhante à sua, em tapete para ser pisoteado.
Depois de me formar em psicologia eu recebi oferta de emprego: 44h semanais, "nem sempre tem como fazer intervalo para almoço", sem pagar hora-extra, para trabalhar como RH por menos de cinquenta reais acima do salário mínimo. Eu precisava de dinheiro, precisava de experiência, precisava de auto-estima de trabalhar em algo a ver com o que estudei (bem pouco a ver para mim, pois sempre preferi o lado "saúde mental" da psicologia, mas isso não vem ao caso...). Mas pensei "se eu aceito, e se meus colegas aceitam, essas ofertas absurdas vão sempre continuar a existir e continuar a se multiplicar". Não, obrigado.
Sua atitude certamente não vai mudar o mundo (provavelmente não mude nada, para ser bem sincero), mas vai ser um passo na direção correta, o que é um infinito por si só (um é infinitamente maior que zero), vai servir para que você se valorize e mantenha alguma auto estima e, quem sabe, com muita sorte, talvez até vire um exemplo a ser copiado pelos seus semelhantes.
Sem um primeiro passo, sem um primeiro a fazer diferente, nada nunca mudará. Por o primeiro não pode ser você?




Postado por Ricardo Ceratti.

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